Por G. K. Chesterton
Tradução de Luíza Monteiro de Castro Silva Dutra
Título original Women in the Workplace — and at Home
Publicado no The Illustrated London News, 18th December, 1926
Original disponível aqui
A recente controvérsia sobre a vida profissional de mulheres casadas é parte de uma controvérsia muito mais ampla, que não está limitada às mulheres atuantes no mercado de trabalho, nem mesmo às mulheres. Ela envolve uma distinção de que os controversistas de ambos os lados geralmente se esquecem. Do modo como é conduzida, ela gira principalmente em torno da seguinte questão: se a vida familiar é o que se chama de “trabalho em tempo integral” ou um “trabalho de meio período”. Mas há ainda outra distinção entre o trabalho integral e o parcial que não tem nada que ver com o tempo que ocupam, mas somente com o campo que abrangem. Um especialista em indústria certa vez chegou a gabar-se de que era preciso de vinte homens para fabricar um alfinete[1]; e espero que ele tenha se sentado no alfinete. Mas o homem que fabrica a vigésima parte do alfinete não trabalha apenas uma vigésima parte da hora. Ele poderia perfeitamente trabalhar por 20 vinte horas – aliás, ele poderia trabalhar por 24 horas que o próspero especialista em indústria pouco se importaria. Ele poderia trabalhar por toda a vida, mas jamais fabricaria um alfinete completo.
Ora, subsiste ainda no mundo um número de lunáticos – entre os quais tenho a honra de contar-me – que pensam que é boa coisa preservar tantos trabalhos integrais quantos possíveis. Num excêntrico costume, nós nos felicitamos sempre que encontramos alguém fazendo algo pessoalmente e por completo. E ficamos alegres quando descobrimos que ainda restam no mundo alguns casos em que o indivíduo consegue ver o princípio e o fim de seu próprio trabalho. Estamos perfeitamente conscientes de que isso é, não raro, incompatível com a civilização científica moderna, e a realidade tem por vezes nos levado a dizer o que pensamos sobre a civilização científica moderna. De todo modo, estejamos certos ou errados, essa é uma importante distinção que nem sempre é lembrada; e essa é a importante distinção que, no debate moderno sobre a ocupação das mulheres, mais deve ser lembrada e, no entanto, é a menos lembrada.
Há provavelmente determinado número de pessoas fazendo trabalhos que não completam. E talvez haja algumas pessoas fazendo trabalhos que não compreendam. Mas nós não queremos multiplicar essas pessoas indefinidamente para então cobri-las todas gritando sobre emancipação e igualdade. Poderá ser uma emancipação que permite à mulher fabricar parte de um alfinete, se ela de fato quiser fabricar parte de um alfinete. Poderá ser uma igualdade se ela de fato estiver cheia de uma furiosa inveja de seu marido, o qual tem o privilégio de fabricar parte de um alfinete. Mas nós questionamos se fabricar parte de um alfinete é mesmo um empreendimento mais humano do que fabricar um avental inteiro[2]. E vamos mais além, questionando se fabricar um avental inteiro é mais humano do que cuidar de uma criança em sua integralidade. A questão sobre o “trabalho de meio período” da maternidade é que ele é pelo menos um dos trabalhos que pode ser considerado integral e quase como um fim em si mesmo. Um ser humano é, em certo sentido, um fim em si mesmo. Qualquer coisa que o faça feliz ou nobre é, sob Deus, algo direcionado a um fim último. A maternidade não é, como quase todos os negócios e profissões, meramente mecanismo e meio para se chegar a um fim. E é algo que pode pela constituição da natureza humana ser perseguido com um entusiasmo positivo e impagável. Seja ou não um trabalho de meio período, não tem de ser um trabalho desleixado, de meio coração.
Pois bem, na realidade não há assim tantos trabalhos que pessoas normais e comuns possam, por si mesmas, desempenhar com entusiasmo. A situação geralmente é falseada com a citação de alguns casos excepcionais de especialistas que alcançaram sucesso. Pode ser que exista uma mulher tão aficionada por atravessar a nado o Canal da Mancha, que seja capaz de continuar a fazê-lo até conseguir quebrar um recorde. Pode ser que exista, aliás, uma mulher tão aficionada por descobrir o Pólo Norte, que continue a fazê-lo muito tempo depois de ele já ter sido descoberto. Sucessos tão sensacionais enchem de volume os jornais, pois são casos sensacionais. Mas a questão de se as mulheres são mais livres na vida profissional ou na doméstica não se coloca nesses termos. Para responder a essa questão, devemos supor que todos os marinheiros do Canal da Mancha são mulheres, que todos os pescadores da frota de pesca de arenque são mulheres, que todos os baleeiros no Mar do Norte são mulheres e então refletir se a trabalhadora mais empenhada e mal paga dentre todas elas está tendo uma vida mais feliz ou mais dura. À primeira vista, parecerá que a grande maioria delas está sob ordens; e que talvez uma considerável minoria esteja sob ordens que elas não compreendem muito bem. Não poderia existir uma comunidade em que a mulher mediana estivesse no comando de um navio. Mas pode existir uma comunidade em que a mulher mediana está no comando de uma casa.
Tirar uma centena de mulheres de uma centena de casas e dar-lhes uma centena de navios seria obviamente impossível, a menos que todos os navios fossem canoas. E isso levaria a graus mais elevados de fanatismo o ideal individualista de que cada um cuide de seu próprio barco[3]. Tirar as cem mulheres das cem casas e colocá-las em dez navios, ou mais provavelmente em dois navios, é obviamente aumentar enormemente o número de empregadas e diminuir o número de donas-de-casa. Se bem me lembro, o único navio tripulado (ou talvez devêssemos dizer nau tripulada)[4] dessa forma foi o navio comandado pelo tenente Bellaye, que aparece numa das “Bab Ballads”: [Nota: O tenente é o herói de “A história da mulher do breu”, de Gilbert. Ele tem tantas admiradoras que um grande número de moças disfarçadas de marinheiros embarca clandestinamente em seu navio.] e mesmo ali pode-se dizer que as moças que navegaram com ele tinham, em última análise, antes um ideal doméstico do que um ideal profissional. Mas aquele comandante de navio não era lá muito profissional e há que lembrar que ele dispensou seus marinheiros da maior parte de suas obrigações, enquanto se deleitava disparando seu canhão.
Temo que a experiência da maioria das mulheres subordinadas em lojas e fábricas seja um pouco mais árdua do que isso. Tomei um exemplo extremamente rudimentar e bruto, mas eu não sou o primeiro retórico a achar conveniente discutir o Estado sob a brilhante e original comparação com um navio. Mas o princípio aplica-se tão bem a uma loja quanto a um navio. E aplica-se com especial exatidão à loja moderna, que chega quase a ultrapassar o navio moderno em tamanho. Uma loja ou fábrica constitui-se de uma grande maioria de empregados; e uma das poucas instituições humanas em que não há necessidade dessa imensa maioria de empregados é o lar humano. Eu ainda penso, portanto, que, para a senhora interessada em navios, o momento mais supremo e simbólico é aquele em que seu navio regressa a casa. E penso que há uma sorte de navios simbólicos que teriam feito muito melhor regressando a casa e permanecendo ali.
Conheço tudo sobre as modificações necessárias e os compromissos produzidos pelas condições acidentais de hoje. Não sou pouco razoável quanto a isso. Mas o que estamos discutindo não é a sugestão de que o ideal deve ser modificado. É a sugestão de que o ideal deve ser abolido. É a sugestão de que deve ser aplicado a esse caso um novo exame ou método de julgamento, o qual não considera se algo é um trabalho integral, no sentido de um emprego auto-suficiente e satisfatório, mas se é aquilo que se chama de trabalho de meio período, ou seja, algo que pode ser medido pelo cálculo mecânico do trabalho moderno.
Já houve deuses do lar, santos do lar e fadas do lar. Mas não estou certo de que já tenham existido quaisquer deuses da fábrica, santos da fábrica ou fadas da fábrica. Como não sou nenhum especialista em comércio, posso perfeitamente estar errado, mas ainda não ouvi falar de nenhum deles. E pensamos que a razão disso está na distinção que fiz no princípio dessas observações. A imaginação, o instinto religioso e o senso de humor humanos têm livre atuação quando as pessoas estão lidando com algo que, conquanto pequeno, é esférico e completo como um cosmos.
O lugar em que os bebês nascem, onde os homens morrem, onde o drama da vida mortal é encenado não é um escritório, uma loja ou uma agência. É algo muito menor em tamanho e muito maior em escopo. E enquanto ninguém seria tolo o suficiente para aspirar a que ele seja o único lugar em que as pessoas devem trabalhar, ou mesmo o único lugar em que as mulheres devem trabalhar, ele tem um caráter de unidade e universalidade que não se acha em nenhuma das experiências fragmentárias da divisão do trabalho.
[1] Adam Smith. A riqueza das nações, livro primeiro, capítulo 1.
[2] Na tradução para o português não fica claro o jogo com as palavras “pin” (alfinete) e “pinafore” (avental ou salopete), num trocadilho que parece envolver uma lógica mais complexa: na sugestão de que “pin” é apenas parte da palavra “pinafore”, vê-se refletida a idéia de que o trabalho parcial de fabricação de um “pin” (alfinete) é inferior ao trabalho integral de fabricação de um “pinafore” (avental).
[3] “To paddle one’s own canoe” é uma expressão em língua inglesa frequentemente usada para indicar auto-suficiência.
[4] Mais uma vez, na tradução para o português perde-se o trocadilho: tripulado, em língua inglesa, diz-se “manned”. Como as três primeiras letras da palavra lembram a palavra inglesa “man” (homem), Chesterton aproveita para abrir um parêntese bem humorado em que sugere que talvez fosse melhor, em se tratando de uma tripulação de mulheres (“women”, em inglês), usar o neologismo “womanned”. Uma saída encontrada para simular o efeito pretendido por Chesterton foi usar os termos “navio tripulado” e “nau tripulada”, um no masculino, outro no feminino.
Fonte:
CHESTERTONBRASIL.ORG: As mulheres no local de trabalho – e em casa
Nenhum comentário:
Postar um comentário